Alô, belezas
Nessa edição da Cavalo d’Água compartilho alguns apontamentos para tentar comentar não só do antes ou do presente de um desenho, mas do que ficou pro futuro. Como a imagem só se completa no olhar do outro, o que você vê quando um desenho olha de volta pra você? Deixe nos comentários suas ideias e impressões para continuarmos tecendo pensamentos e significados.
De trilha sonora, playlist para embalar criações :)
Não sei se é possível agarrar o início dum desenho, eleger um ponto de partida quando estamos imersos numa linguagem constituída de emaranhados. Com o corpo como interlocutor, o desenho traz pro visível pensamento, hesitação, memória, sentimento… E também traz consigo um aspecto de domesticar e trazer para perto alguma coisa a qual nós tentamos ver-perceber e queremos nos debruçar sobre.
Esse desenho tem o nome Três Inteligências (ainda em debate). Ele mede 70x50cm, feito a lápis, tinta acrílica e papel preparado com gesso. Fi-lo em paralelo ao último ciclo do workshop Cadernos de Desenho e Pensamento - que, aliás, inicia novos encontros dia 28/09. Veja os detalhes nessa outra edição:
como começa?
Na mesma medida que eu queria estudar uma certa pose eu não tive nunca muita certeza do que se sucederia. Isto pra mim exemplifica a questão dos emaranhados. A gente começa a puxar um fio a partir do próprio ato do desenho e quando vê está com um bolo de fios e linhas e mais coisas saindo por todos os lados. Desse embaralhamento vamos puxando e fazendo escolhas do que vai se tornando visível. Conduzida por um palpite, sei que quero dizer e provavelmente já estou dizendo alguma coisa quando começo um desenho. Mas ao mesmo tempo não me importo seriamente porque aquilo se revelará à medida que trago pro mundo o que do mundo há em mim. É um movimento de respiração.
No quadro o fundo não apresenta um horizonte, está composto por uma massa amarela enevoada, transitando entre o quente e o suave. No plano principal são apresentados dois conjuntos: três figuras e três objetos espirais. A criatura cabeluda, mistura humanóide com bicho, olha pra cima. Em oposição encontramos uma esfinge e um cão deitado. A primeira, figura mítica híbrida com cabeça e dorso humano, corpo de leão e asas de ave, é um ser entre dois mundos. Já o segundo, o cão, é o único corpo que não dá indícios de mistura, de ser metade uma coisa e metade outra, e se apresenta ali mais passivamente que as demais, ainda que em algum tom de atenção.
No segundo conjunto, ordenadas no lado esquerdo, três formas em espiral que parecem conchas. De alguma maneira elas também se associam a possíveis formas orgânicas, partes de órgãos ou micro partes do interior corporal vistas através de ampliação microscópica.
Sem um contraste muito dramático, fui construindo camadas com veladura alternando com riscar o papel com lápis. O fundo tem diferenças tonais que a câmera e a tela apagam. É sempre uma dificuldade isso pra mim, porque uso variações de cor muito próximas e as fotografias que eu consigo tirar nunca chegam a reproduzir bem o efeito ao vivo. A primeira marcação no papel foram os riscos do fundo, desdobramento de um exercício de experimentação do workshop. As linhas soltas pairando acabam por remeter ao delineado de limites-fronteiras entre um campo e outro, além de trazer pro jogo evidências da linha como registro dum desenho, partes do tal emaranhado.
invenção-bicho
Uma coisa que me levou até estas criaturas se olhando foi tentar perceber que poses “humanas” estariam no meio do caminho para animais, nesse caso o cão. Depois desse primeiro desenho veio a ideia da esfinge. Uma vez tendo os estudos e esboços em separado, quais relações eu gostaria de apresentar entre esses seres dentro do contexto desse desenho? Foi aí que imaginei de que maneira a criatura pessoa-bicho poderia estar a aprender ou tentar mimetizar, ou até a voltar para um jeito de corpo de bicho. Ela mesma sendo um bicho inventado, mitologizado.
Criaturas híbridas e em algum estado de contemplação, como se as figuras estivessem em uma espécie de suspensão reflexiva, aparecem bastante nos meus desenhos. Acho que passa por um desejo de apreender uma sensação de portal-fronteira entre modos de estar, entre linguagens e experiências.
Se o desenho reúne em matéria o pensamento em acontecimento, aqui estão mais dúvidas e questões do que conclusões — sobre caminhos de elaboração e de processos, vestígios de um desenho que vem do corpo e um corpo que se molda para o e a partir do desenho, além de incertezas sobre o que é essa invenção de ser humano e onde estamos diante de três tempos que se entrelaçam.
Gostam deste tipo de reflexão? Posso comentar mais desenhos e processos nas próximas edições, let me know! Envie uma mensagem ou deixe um comentário :)
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Um beijo e até a próxima!
adorei o desenho e a descrição do processo! super me identifico com esse modo de fazer "conduzido por um palpite" :-)